Crónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – O progresso

Licínia Quitério

De ontem e de hoje – O progresso
por Licínia Quitério

 

Há muito tempo não se atrevia a subir a rua. Os anos pesam e dias há em que o peso se concentra todo nas pernas. Subir é arrastar uma massa desmedida, amálgama de lembranças e anseios e estremecimentos vários. O Sol, menino atrevido, chamou-o, com aquele calorzinho bom que afaga e promete. Ao sair a porta, disse para dentro para a companheira:

– Se eu me demorar, não te preocupes. É que me apetece sentar-me um bocado no meu banco do costume.

Uma saudade dos velhos plátanos da praça agitou-lhe as mãos que recolheu nos bolsos do blusão. Sentia-se bem. De pouco se pode fazer o contentamento de um homem.

Na súbita pressa de chegar, nem deu pela aproximação do outro. Um aperto de mão, confirmado por outro aperto no cheio do braço.

– Há quanto tempo, homem? Temos sentido a tua falta. E agora que andamos todos perdidos, ainda nos lembramos mais das nossas discussões.

– Perdidos?

– Sim, desde que começaram as obras. Nem te conto. Anda ver. As árvores estavam velhas, doentes, dizem. E as raízes davam cabo da rua. E davam cabo dos prédios. Já não há árvores. Houve quem chorasse quando as máquinas avançaram. E depois eram os pardais. Aquela gritaria à tardinha. E a sujidade que se juntava. E os gatos à noite por ali a rondar. Já não há pardais. Nem gatos. Agora vieram os ratos. Hão-de dar cabo deles, dizem. O empedrado novo está bonito. Tudo muito limpinho, muito certinho. Era uma pena haver folhas de árvores a sujá-lo, dizem. Os bancos foram retirados. Aqueles velhos por ali sentados, às vezes soltando palavrões, de bengala e beata ao canto da boca, davam mau aspecto. A quem? Às pessoas que vêm de fora. Já os viram sentados nos degraus da estátua. Teimosos. Parece que a estátua também vai mudar de sítio. É o progresso, dizem.

De volta a casa, a companheira admirou-se:

– Já?

Resmungou:

– A seguir vão levar os velhos, dizem.

E bem alto:

– Tão cedo não volto à praça.

Continuou, a despir o blusão, de sobrolho carregado:

– Arranja-me um café, mas forte e quente. Não é como aquela mistela que às vezes me dás. Estou velho, mas ainda sei o que é um café como deve ser. Percebido?

 

Licínia Quitério
Licínia Correia Batista Quitério nasceu em Mafra em 1940. Foi professora, tradutora e correspondente comercial.
Quando chegou à reforma decidiu publicar o que escreve.
Tem neste momento publicados seis livros de poesia e três de prosa (contos e romance).

 


Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Licínia Quitério.


 

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